Em Itália também se mastigou bem o Situacionismo especialmente o autor Stefano Tamburini (1955-1986) que entre várias sacanices elaboradas, é de se referir o divertido Snake Agent (1984) em que fotocopiava as tiras “clássicas” (como o Secret Agent X-9), remontando para histórias de espiões obcecados em prazos e timings minuciosos. Para gozar com a questão da precisão e cronometragem, as imagens eram arrastadas na fotocopiadora dando um efeito de “desfoque” – da mesma forma quando um objecto é “fotografado” a uma grande velocidade. Já antes, Tamburini, diz-se, que chegou a fazer BDs de “westerns” para a enorme indústria italiana de “Fumettis” decalcando os desenhos de outras BDs similares (5). Nunca vi o resultado disto nem consegui confirmar através dos meus contactos italianos mas só por si é um belo mito urbano!
 |
Snake Agent por Tamburini publicada na revista brasileira Animal (ou julgavam que isto tinha sido traduzido em Portugal? Ah!) |
Com o advento da fotocopiadora e mais tarde dos PCs, o uso de fotografia ou de outras imagens, colagens e inserção de objectos ou texturas nos trabalhos tornou-se mais ou menos vulgar para desenhar ou acrescentar algo ao desenho embora o objectivo de usar excertos (samples) de imagens reais (geralmente fotografias) sirva apenas como decoração sem que isso traga elementos subversivos à narração. A lista será interminável, podemos encontrar nos “comics” de super-heróis (John Byrne), nas BDs francesas (Piotr), espanholas (Josep M. Béa), belgas (La Vache de Johann de Moor) e no influente britânico Dave McKean. A sua influência foi tal que durante uma década, os ilustradores quase perderam os seus empregos porque qualquer Designer achava que poderia fazer ilustrações à McKean com o Mackintosh “scanando” umas texturas e despejando na “ilustração”! Antes deles todos ainda podemos encontrar um importante trabalho de colagem fundido com texto e imagem pelo artista de Art Brut, Henry Darger (1892-1973) que fez o maior livro da história (15 145 páginas!) e claro é obrigatório referir o grande mestre uruguaio/ argentino Alberto Breccia (1919-1993) que conseguia desenhar tão bem com os habituais riscadores como com papel colado. Entre 1973 e 1979 publicou várias BDs que adaptavam contos de H.P. Lovecraft (7), onde ironicamente usou a colagem (fotografias) para poder representar o irrepresentável - que é o fulcro da obra Lovecraftiana - sendo estas BDs talvez o pico virtuoso do uso de colagem em BD.
Nos anos 90 surge o movimento OuBaPo (8), apoiado pelos membros da editora francesa L’Association, que teorizou uma série de ideias para BDs diferentes dos cânones habituais aplicando-se na criação restrições matemáticas ou semânticas. Irmanada do movimento OuLiPo que afirmaram que os seus escritores eram ratos que construíam um labirinto que dele se proponham sair, entre as várias propostas de exercícios na sua revista oficial, OuPus I (L’Association; Jan'97), vamos encontrar desde o clássico “detournement” (um texto de Freud numa prancha de Little Nemo in Slumberland) à diminuição do número de vinhetas de uma BD já publicada - imaginem uma aventura num álbum de Tintin de 60 e tal páginas em que se colocam 10 vinhetas numa só página. Mas também colagens de elementos de uma BD noutra, reenquadramento de imagens e até substituição de elementos gráficos por outros novos. Foi uma caixa de Pandora teorizada e modelada que poderá ter levado criadores de todo do mundo a fazerem experiências novas com a BD, embora duvido que o norte-americano Hank Retchum tenha lido estas teorias redigidas em francês quando fez a simples página Menaced Dennis no primeiro volume de Legal Action Comics (Dirty Danny Legal Defense Fund; 2001). Nesta BD usa close-ups da tipificada série “Dennis The Menace” – aquele género de BD sobre putos de classe média norte-americana que estão sempre a fazer traquinices - e que lhe tira justamente esse ar inocente e divertido para transmitir uma cena de violência sobre crianças – nunca é demais relembrar que os EUA é o país com maior estatística de pobreza infantil, trabalho de menores, abusos sexuais... Definitivamente algo que é originalmente inocente pode ser “remisturado” para algo sinistro.
 |
O irritante Denis leva porrada! |
Entre várias iniciativas produzidas pela OuBaPo a mais próxima do “remix” musical é sem dúvida a Series OuMuPo (2004-06), em parceria com a editora fonográfica Ici, d’ailleurs. Foram produzidos seis CDs acompanhados pelos respectivos “booklets” com BDs. Cada “rato”, músico ou autor de BD, inventou os seus “labirintos para saírem deles” embora houvesse uma regra geral que todos deveriam usar os materiais sonoros e gráficos dos catálogos das editoras envolvidas no projecto. Assim, The Third Eye Foundation, DJ Hide, Rob Swift, DJ Krush, Rubin Steiner e Kid Loco misturaram faixas de discos das bandas como Micro:Mega, Matt Elliot, Yann Tiersen, Bästard entre outros projectos, não fugindo muito a uma lógica de “mix-tape” de música electrónica que esteve na moda nos anos 90 – batidas Hip Hop sobre um ambiente de Clubling burguês – e apesar de muitos escolherem os mesmos temas para misturar, ainda assim conseguiram transmitir a personalidade do misturador – ex.: Steiner é mais kitsch / Disco, Swift mais Rap, etc… Da mesma forma os autores de BD Jochen Gerner, Luz, JC Menu, Dupuy-Berberian, Killoffer e Étienne Lécroart usando imagens de vários autores editados pela L’Association (José Parrondo, Matti Hagelberg, David B, Sfar, etc…) conseguem mostrar versatilidade de propostas de “mixagem” e de identidade artística sendo o trabalho mais conseguido será o de Killoffer que reproduz as 64 jogadas de uma partida de xadrez entre Marcel Duchamp e Edouard Verschueren em 1923.
 |
OuMuPo, vol.6 reúne DJ Krush no CD e Killoffer no livrinho / BD |
 |
nunca o xadrez foi tão divertido de se assistir! |
Há no entanto uma nova geração de autores que estão a fazer uma síntese do que tenho estado aqui a escrever, são os nossos contemporâneos
Dice Industries (Alemanha),
Fredox (França) e
Dunja Jancovic (Croácia), que mantêm a chama acesa do corte e costura e preparam-se para esticar para um novo nível, embora para já os seus trabalhos sejam mais gráficos do que narrativos. Fredox usa colagens para mostrar um mundo “porno-gore” cheio de feridas psico-sexuais e desordem social – como poderão tomar conhecimento no assustador
Les Dossiers Noirs de L’Histoire (Le Dernier Cri; 2001) que compila esse trabalho gráfico. Recentemente na antologia
Hopital Brut (Le Dernier Cri) têm-se assistido à publicação de trabalhos com sequências que se inscrevem no âmbito da BD. Dice Industries fez um caminho oposto, começou por fazer BD depois achou que já estava tudo desenhado e que ele não conseguiria acrescentar mais nada nesta forma
(9), e passou a usar a colagem para potencializar novas visões. Usa elementos das BDs populares da Disney (e quejandos) e Manga comercial para criar paisagens e abstracções. A maior parte destes trabalhos tem sido mostrados em galerias ou pequenos catálogos auto-editados – no seu “zine de vida”
QWERT com 15 números lançados, os últimos quatro dedicados ao trabalho de colagem. Recentemente para o meu “zine de vida”, o
Mesinha de Cabeceira (#23 : Inverno, Associação Chili com Carne; 2012) Dice pegou numa série de colagens e acrescentou um texto para podermos inserir esta série na categoria de BD, será este o regresso de Dice à BD? Espero que sim! Dunja
no seu recente livro
Circle Cycles Circuits (Firma; 2012) coloca colagens ao serviço da narrativa e funde-as com desenhos seus – as imagens são sobrepostas, montadas, desenhadas por cima. As imagens tanto são fotografias figurativas como são apenas formas geométricas ou abstractas. Serão desenhadas à parte e coladas posteriormente? São pinturas falhadas que são recuperadas para “texturar” as páginas? Não sabemos…
 |
Dice Industries no Mesinha #23 |
Em 2011 apareceu um livro intitulado Katz que teve o triste final de ter sido destruído sob a acusação de infringir “copyright”. Katz substituía as cabeças de todos os animais de Maus por cabeças de gatos – relembro que em Maus, ao retratar a perseguição dos judeus no regime Nazi, Spiegelman retrata os judeus como ratos, os alemães como gatos, os polacos como porcos... Quando os autores anónimos de Katz fazem a substituição das cabeças, uma das várias perguntas que se levantava é o maniqueísmo antropomorfo realizado por Spiegelman na construção da sua obra. O livro foi recolhido em 2012 do mercado e os exemplares foram destruídos num revivalismo histórico digno dos tempos em que os The JAMMs (mais tarde The KLF) tiveram de retirar o seu disco com samples dos ABBA. No entanto a barbárie de 2012 chega a ser pior a de 1987, pois se os JAMMs foram prá Suécia destruir os discos como mais uma provocação no caso de Katz os exemplares tiveram de ser destruídos, incluindo o ficheiro digital, na presença de representantes oficiais! (10)

A conclusão violenta deste livro mostra que afinal a BD ainda contém elementos perigosos por explorar. Apesar de ter vivido tempos “zombies” actualmente não é uma arte morta!
Marcos Farrajota
Lisboa, 26/02/13
Agradecimentos Tommi Musturi, Bedeteca de Lisboa, Diniz Conefrey, Vitor Petel, Ilan Manouach, Thanassis Rentzis, Valerio Bindi e Alberto Corradi. Ondina Pires traduziu para inglês este artigo que foi publicado no jornal finlandês Kuti, e Joana Baguenier traduziu para francês para ser publicado no livro MetaKatz. Uma segunda parte deste levantamento de “comix-remix” está a ser redigido mas desta vez focado nas questões narrativas.
Notas
(1) é curioso que o processo levantado contra os Negativland tenha sido os “defensores dos pobrezinhos” dos U2, que nada fizeram para aliviar os sacríficos que os Negativland sofreram.
(3) O primeiro é a Mulher 100 cabeças (que quer em francês e português pode-se ser como a “mulher sem cabeças”) e o segundo é Semana de Bondade. Procurem edições modernas destes livros, em Portugal estão publicados pela &etc
(4) Ver edição portuguesa da Libri Impressi, Ele foi mau para ela (2011)
(5) Outra curiosidade, quer a Mulher 100 cabeças de Ernst quer Una Biografia de Chumez, foram adaptadas para cinema. A mulher foi realizado pelo francês Eric Duvivier em 1968 e Una Biografia pelo grego Rentzis Thanassis em 1975- que é capaz de ser a única adaptação realmente fiel para cinema de uma BD, embora o realizador tenha acrescentado um capítulo extra no final do filme.
(6) É de assumir que seja um tipo de BD popular dos anos 70, feita por autores anónimos, mal remunerada e de conteúdo estereotipada, do tipo “Tex” da Bonelli ou algo assim...
(7) Estas BDs estão exemplarmente reunidas em Les Mythes de Cthulu (Rackham; 2008)
(8) Ouvroir de Bande Dessinée Potentielle / Oficina de Banda Desenhada Potencial