sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Angoulême: Festival de BD, por Marcos Farrajota

























Tamanho de pilas
O maior problema do Festival de BD de Angoulême, que decorreu entre 30 de Janeiro e 2 de Fevereiro deste ano, é justamente explicar o que ele é! Como explicar a uma pessoa seja ela uma leitora ou não de BD o que é aquele acontecimento cultural?
É um festival de BD em França, ponto assente. É um festival do “tipo europeu”, ou seja, um evento onde há venda de livros e artigos similares, onde se realizam encontros com autores e se organizam exposições de originais – ao contrário do “estilo norte-americano” que baseia-se apenas em comércio de produtos e encontros com autores e outros agentes da indústria.
Depois disto, é mais complicado esmiuçar a coisa porque em Portugal apesar de termos tido grandes festivais no passado (Salão do Porto e Salão Lisboa) ou ainda activos (Festival de Beja e a BD Amadora) ainda assim estes são pequenos!!!
 O Festival de Angoulême é o mais importante evento de BD na Europa, já com 41 anos de idade. Mais? É o Shoah do eucalipto? Um Festival Rock de Verão mas no Inverno e sem bandas? O South by Southwest dos quadradinhos? Uma orgia de “bedófilos”? (bedófilos é uma expressão criada por três engraçadinhos para definir “bedéfilos”, pessoas que gostam de BD, que gostam BD para crianças, aproximando-se assim à expressão “pedófilos”) Que espécie de outro evento cultural conhecido servirá de comparação para um leigo?
Creio que não há resposta e nada parecido, por isso, o melhor é tentar explicar de alguma forma: imaginem Viseu, por exemplo, onde nada se passa durante o ano, e no último fim-de-semana de Janeiro, a cidade é invadida por milhares de pessoas, sejam visitantes consumidores apenas, e toda a espécie de profissionais e amadores ligados à BD como editores, agentes literários, autores, directores de institutos ou eventos, investigadores jornalistas, críticos, etc… vindos de toda a parte do planeta e que esgotam a lotação de quartos de hotel, de pensão, de pousada de juventude e até refúgio para sem-abrigos - verdade, já me aconteceu em 1998 quando fui para lá à “pato bravo”!
Continuando…  No centro da cidade são montadas várias tendas para stands comerciais. A maior, ou melhor, são duas lado a lado, intituladas “Monde des Bulles” (O Mundo dos Balões) servem para as grandes editoras comerciais (Casterman, Glenat, Gallimard, Delcourt, etc…). Uma um bocado menor para editoras médias (L’Association, Fremok, 5éme Couche, Actes sud, Atrabile, Ego Comme X, etc…) conhecida por ser o “Novo Mundo” que se prolonga para uma de “BD Alternativa” (produção em fanzines / auto-edição) e uma série delas menores para direitos internacionais,  para merchandising asiático (refiro-me à cultura Manga / Anime, claro, e não a pichebeque chinês), para os novos talentos, para coleccionismo (chama-se “Para-BD”) e pelos vistos este ano para o género “BD policial”.
Angoulême para além de ter parque museológico normal a qualquer cidade antigo europeia, comparando com Viseu (não se esqueçam que é um exemplo, se preferirem podem mudar para Guarda!) tem também uma grande parte dedicada à BD. O Museu da BD, a Nave Moebius – o primeiro museu inaugurado nos anos 90 onde inclui uma Bedeteca -,  a Universidade de BD / Ilustração / Cinema de Animação / Imagem digital e ainda Casa dos Autores (de residências para estudantes e professores), fazendo literalmente de Angoulême a Cidade da BD.

Mas há mais! Para o festival, são usados não só esses equipamentos mas uma série de edifícios da Câmara para fazer exposições oficiais como teatros, espaços culturais, museus, o palácio da justiça ou ainda as ruas (este ano dedicado aos 80 anos da revista do Mickey – obviamente a rua é usado para situações mais populares)
Não oficialmente, também é normal usarem as igrejas e catedrais para serem feitas exposições de BD - de teor cristão, claro. Ufa! Chega para primeira abordagem?
















Pés Mortos
Se conseguiram imaginar o espaço que a BD ocupa nos dias do Festival de Angoulême, chegou a hora de perceber o que se passa por lá.
Ver tudo é impossível, ponto final. A Quinta e Sexta-Feira são os dias mais calmos, e os melhores para se verem as coisas com calma e sem multidões porque quando chega Sábado temos uma invasão de público enorme, que ocupa a cidade toda e muitas vezes para juntar à histeria os franceses lembram-se de convocar manifestações políticas ou encontros de motards, ou os dois! Enfim, como diz a expressão francesa: un bordel!
E depois, é o folclore “kitsch” e deprimente que faz com que se respire, vomite, transpire BD 24 horas: todas as lojas, seja farmácia ou de vestidos de noivas tem um álbum do Astérix ou coisa parecida na montra, montam-se quiosques com promoções a BDs comerciais, oferecem-se números gratuitos de revistas de BD (como a Zoo), os putos andam sempre com uma máscara ou chapéu de uma personagem qualquer de BD (já vi de Spirou mas este ano eram os “Legendaires”, um fenómeno comercial francês qualquer que felizmente não conheço nem quero), … Ah! E os restaurantes aumentam os preços na Sexta e Sábado mesmo à sacana!
Quem estiver a ler, já deve pensar que odeio aquilo mas não. Angoulême é um terreno sem consenso e um espaço de eclectismo à força mas a verdade é que reside a sua importância e força. Convenhamos, está lá toda a gente ligada à BD, seja do tipo parva-comercial à mais artística (na falta de melhor termo), e isto resulta não por uma opção de programação, porque até há festivais de BD mais interessantes ou artísticos – como foi o saudoso Salão Lisboa, e actualmente o Fumetto (na Suiça), Bastia (Corsega) ou o Komikaze, em Ravenna (Itália), este último dedicado à BD sobre a “realidade”.
Só que Angoulême é o “zeitgeist” da BD, para o bem e para o mal. E de mal a BD tem muito, claro, é uma arte que ainda hoje abraça com força a produção infanto-juvenil e desdenha a vanguarda, ou que “adulto” significa para muitos os orgasmos das mulheres desenhadas por Manara ou a violência fascista de Frank Miller. Angoulême não ostraciza nada, dá espaço para tudo numa dança macabra entre arte e comércio.
Macabra mas não ignóbil porque vai acompanhando a lenta evolução artística da BD, que muito tem mudado nos últimos 20 anos, talvez seja necessário ir ao Fuck Off para ver as propostas mais marginais mas na programação oficial de Angoulême já se comemoraram os 10 anos da L’Association ou se mostrou os incríveis resultados do projecto Match de Catch à Vielsam, que juntava os artistas pedantes da Fremok e deficientes mentais .
É raro, para quem é do meio, Angoulême impressionar. Este sentimento blasé não é obrigatório para todos, claro está, e será impossível não se ver coisas interessantes nas exposições e claro comprar (comprar mesmo muito) bons livros de BD. Para isso é preciso andar muito de um lado para o outro. É preciso ser estratega para racionalizar a “falta de tempo + km de material para ver + trânsito humano”. É preciso seleccionar e racionalizar se queremos mesmo ver certas exposições ou ir a tendas onde se vende super-heróis e mais um novo Blake & Mortimer. Claro, que aconselho, caso tenha tempo e paciência para ver de tudo um pouco, uma vez na vida, só sentir a atmosfera de “loucura” única que passa por aqui – e no fim acabar por rejeitá-la nas próximas visitas.
Resta dizer ainda que existem autocarros gratuitos durante o Festival que circulam na cidade para levar do centro à parte mais periférica e baixa da cidade. Ainda assim os pés no final do dia ressentem-se e perguntam: estas bolhas são por causa da BD!?



















Olho cortado
Pessoalmente, um dos grandes motivos para ir a Angoulême este ano era ver o autor japonês  Suehiro Maruo ao vivo. Tentei há muitos anos, traze-lo a Lisboa mas os autores japoneses são complicados e caros de convidar para o Ocidente. Falamos de custos de viagem, estadia, alimentação e acompanhamento 24h de alguém amigo (não gostam de viajar sozinhos) ou de um tradutor (por razões óbvias). São também viciados no trabalho, e para viajarem tem de ter mesmo bons motivos profissionais. O que quer no caso de Maruo quer de Atsushi Kaneko a ida Angoulême era mais do que justificada porque foram editados recentemente livros de ambos, quer em pequenas editoras como a Le Lezárd Noire quer pela grande Casterman - que se calhar até foi quem pagou a viagem, não?
Juntos participaram numa conversa no Espaço Franquin, Sexta-Feira de manhã, com uma sala cheia de interessados. Como é habitual nos franceses, estes fizeram montes de perguntas pseudo-intelectuais, especialmente a Maruo porque este é o mestre vivo do género “Ero Guro” na BD.
O “Ero Guro” é um estilo artístico e literário japonês que surgiu nos anos 20 e 30 do século XX e que explora o grotesco, o ridículo e o desvio sexual, cuja a figura maior será Edogawa Ranpo (1894–1965), um escritor que usava este pseudónimo verdadeira corruptela fonética de Edgar Allan Poe, e que Maruo já várias vezes adaptou para BD. Maruo é mais conhecido no mundo talvez pelas suas capas para Naked City mas quem cruza com as suas BDs não se esquece delas, sobretudo dos olhos a saírem das caveiras que são lambidos pelas línguas dos seus assassinos / violadores. O Cão Andaluz é uma outra influência assumida por Maruo nessa simpática conversa, tal como “História do Olho” de Georges Bataille.
Kaneyo é um autor mais novo que Maruo, influenciado pelo próprio mas que tem uma abordagem mais Rock e Pop pelo menos visualmente porque não conheço a sua obra - peço desculpa mas os orçamentos são sempre limitados para 10 000 metros quadrados de possíveis compras de BD. Um dia digo-vos algo sobre ele!
Mas os japoneses não vivem só de sangue e tripas, e em Angoulême para quem quisesse ver algo diferente em geral e daquele país em específico deveria ir ao “submundo” da coisa! Como já escrevi, existe a programação oficial e depois há o “off”, ou seja iniciativas privadas que aproveitam o festival (e o festival divulga-as) para fazer uma outra programação que tanto pode ser uma simpática exposição de Étienne Davodeau (nunca  leram o Alguns dias com um mentiroso?) na Casa dos Povos e da Paz (um centro cultural de Esquerda) como infelizmente também temos as associações cristãs e as suas exposições nas igrejas…  E depois ainda há o FOFF, criado em 2010 como “Angoumerde Fuck Off” pelo Le Dernier Cri, que entretanto adocicou o nome e tornou-se  MESMO num evento “ off” onde alberga os editores “selvagens” que não querem ir para a tenda dos alternativos.


Este ano ofereceram algumas exposições (já lá irei) entre elas, uma de Yuichi Yokoyama, sem dúvida um dos autores mais excitantes nos últimos anos. Dizem que não há género para comparar com Yokoyama e é bem capaz de ser verdade. Descoberto no Ocidente pelas edições Matière que já publicaram seis livros seus, todos eles sem palavras e a preto e branco, excepto o novo Baby Boom em que usa uma complexa selecção de cores de canetas de feltro para desenhar. Procurem os seus livros, o que não será difícil paradoxalmente para um autor que nunca usa palavras, o que não faltam são edições ocidentais dos seus livros… Talvez fosse a exposição mais “pacífica” deste ano, uma vez que o sangue parecia ser a ordem dos dias nas exposições de Angoulême. Têm coragem de me acompanhar?

















Tripas coração
Para fechar a referência ao FOFF, havia também uma exposição do norte-americano Mike Diana, autor polémico que já escrevi na Umbigo quando ele visitou Lisboa em 2008. Cortesia da galeria Divus (Praga / Berlim / Londres) que editou o livro America : Live / Die (2012), um raisonné das suas BDs e pinturas, foi uma boa oportunidade para rever pranchas escatológicas do primeiro autor ocidental a ser proibido a desenhar!


Voltando ao oficial, houve três exposições de tirar o folego, que podemos considerar as “principais” ou as mais importantes deste ano. No Hotel Saint Simon, houve uma exposição de Willem, autor holandês que reside desde 1968 em França e que foi o Presidente do Festival deste ano. Mais conhecido por cartunista ou de autor de BD humorista, com uma carreira de 50 anos, muitos esquecem-se que Willem foi um Provo (movimento de situacionistas holandeses) e “espião” na Charlie Mensuel – fabulosa revista de BD que existiu entre 1969 a 1981 e que continua a ser imbatível ao nível de Design gráfico. Foi com alguma emoção que pude ver algumas maquetas da revista nesta exposição. De resto, o humor político de Willem tanto pode meter quatro freiras a masturbarem-se cada uma com uma ponta de uma cruz com Jesus cruxificado (para questionar a monogamia) como pode desenhar um jogo da glória em que temos de sobreviver aos genocídios do século XX. Em Portugal podem ver os seus cartoons numa boa edição da Assirio & Alvim, De mal a pior (2011) no âmbito da sua exposição no Cartoon Xira 2010, e as suas BDs chocantes na inexplicável edição Paz no mundo (Inquérito; 2003) - inexplicável pelo isolamento e descontextualizado meio bibliográfico português e pela horrível capa!!!



Não sei que contributo Willem deu ao festival mas trouxe uma pandilha de autores holandeses – como o Marcel Ruijters, autor de Inferno (MMMNNNRRRG; 2012) – para fazerem cartazes humorísticos impressos em serigrafia que eram colados na cidade, e posteriormente arrancados pelas pessoas… Um presentinho “à la” Provo?

Na Nave Moebius, duas exposições dedicadas à 1ª Guerra Mundial, uma de Jacques Tardi e outra de Gus Bofa (1883-1968). Bofa em Portugal é um desconhecido, que me lembro, só vi algo dele uma vez, em 2007 na exposição “Cinema em Cartaz – Colecção Internacional de Cartazes dos Primórdios do Cinema” na Cordoaria Nacional. Mas também foi esquecido em França, apesar de ser admirado e referido como influência para autores como Blutch, Nicolas de Crécy e Tardi. Recuperado agora com uma biografia editada pela Cornélius, foi escrita por Emmanuel Pollaud-Dulian que também foi o comissário desta exposição intitulada L’adieu aux armes, que reunia vários tipos de peças sobre o autor. Poderá agora haver um novo público a reparar como ele era um grafista soberbo! Bofa esteve na Primeira Guerra mobilizado como soldado de Infantaria. Da frente de guerra veio gravemente aleijado, considerado inválido em 65% pelo Exército, e fará catarse da sua experiência e o retrato das misérias dos soldados sobreviventes, em livros literários como em BDs publicadas em revistas. Pergunto se o seu esquecimento não será uma censura do sistema para quem ousou colocar o dedo na ferida? Há 100 anos atrás, era crime desmoralizar os tarados dos militares e a lógica da guerra…

O ódio de Tardi à Guerra é conhecida, e ainda mais o seu desprezo pelo Estado – o Homem (sim com “H” maiúsculo!) recusou, o ano passado, o galardão da Legião de Honra, o mais alto reconhecimento que pode ser atribuído pelo estado francês, para «continuar a ser um homem livre». Para quem já leu Varlot Soldado (Polvo; 2001) já o devia o tema recorrente da Primeira Guerra na sua obra, apesar de ser um trabalho menor face a C'était la guerre des tranchées (Casterman; 1993), álbum dedicado ao seu avô que combateu nesta guerra. Graças a esse álbum que percebi que a Primeira Guerra terá sido a mais bárbara de todas, uma vez que misturou os aspectos de guerra clássica (soldados frente a frente, conquista pelo terreno, cavalaria, baionetas) com as novas tecnologias de guerra moderna: gás e químicos, meios aéreos (balões, aviões), tanques e outros veículos motorizados, artilharia pesada,… Essa selvageria já denunciada por Tardi voltou recentemente com os dois álbuns Putain de Guerre! (Casterman; 2008-09) em parceria com Jean-Pierre Verney. Foi sobretudo esta obra que se pode ver mais nos 600m2 da exposição, Tardi et la Grande Guerre, embora houvesse também originais das outras obras acima mencionadas e algumas ilustrações para um livro que acompanha um disco da cantora Dominique Grange, sua mulher.


A BD actual vive um gracioso momento, livre de espartilhos e de censura, e tem mostrado em imagens de uma forma física e material (em livro!), ao contrário da fluidez das fotografias na internet ou documentários no cinema, uma galeria de terrores que o século XX foi pródigo como o holocausto nazi (com Maus de Art Spiegelman, obra que também esteve patente na Nave Moebius há dois anos), Hiroxima (Hadashi no Gen de Keiji Nakazawa) ou a Guerra da Bósnia (Safe Area Gorazde de Joe Sacco). Se a BD anda sempre às turras entre a imagem e o texto, nestes relatos das desgraças da Humanidade, não poderia ser mais eficiente, os bons textos (ou até bom jornalismo no caso de Sacco) são acompanhados por imagens chocantes que não podem ser apagadas com uma mudança de canal televisivo ou de página de jornal que irá para o lixo em pouco tempo. Infelizmente as imagens continuarão lá, impressas num suporte eterno chamado livro, prontas a serem revistas (e relidas!) para não nos esquecermos do que somos vítimas nas mãos dos idiotas que elegemos.

Veremos se as comemorações do Centenário da 1ª GM transformarão uma das maiores desgraças da Humanidade num “show” de consumo leve e institucionalzeco depois de Tardi e Bofa! Se o fizerem Tardi tem toda a razão para não aceitar medalhas…

















Pele Negra Azul
Talvez seja exagero meu escrever que é preciso ir ao FOFF para receber propostas mais radicais no “Fuck Off”. Na realidade, no olho do furacão, está o stand da belga 5éme Couche na tenda do “Novo Mundo” com mais uma provocação este ano!

Depois de Ilan Manouach ter tirado o Petzi num álbum do Petzi, depois de três autores masculinos da casa terem criado uma falsa autora de BD autobiográfica, à qual a imprensa achou a “Judith Forest” como o cume da sinceridade em BD, depois de Ilan Manoauch ter substituído todas as cabeças de animais no Maus (de Art Spiegelman) por cabeças de gatos no livro Katz (justamente no ano em que Spiegelman era o Presidente do Festival Angoulême) em que resultou na destruição física dos exemplares do livro após um processo legal a lembrar o que aconteceu a John Oswald e Negativland nos anos 90 – ler o livro Metakatz sobre este caso e tudo o que levanta sobre criação artística, uso de imagens e propriedade intelectual, ou até sobre a INDÚStria do papel. Eis que aparece no mesmo stand este ano o álbum Les Schtroumpfs Noirs na mesa do 5éme Couche! Uma edição que reproduz na integra o álbum Os Strumpfes Negros mas todo impresso a azul!!!


Originalmente editado em 1959 pela Dupuis, esta BD mete os pequenos homens azuis com um problema a lembrar uma praga de zombies, ou seja, o Strumpfe que for mordido por um Strumpfe negro (que foi picado por uma mosca negra marada qualquer), fica também negro, a saltitar, a gritar “gnap gnap gnap” feito um selvagem. Foi uma BD que foi considerada racista, sobretudo nos EUA, chegando a ter por aquelas bandas uma versão em que o negro foi substituído pelo roxo. Com esta “nova” versão pirateada, que o editor Xavier Löwenthal afirma publicamente que não sabe como surgiu – no Libération afirma que a DHL chegou lá ao stand e entregou-lhes uma caixa cheia destes livros azuis – mas dizia, com esta nova versão acaba o racismo!!! Porque todos os Strumpfes , azuis ou negros, estão impressos a azul!

Mais extremo ainda é que todo o álbum original foi “rapinado”, ou seja, não há depósito legal ou ISBN a acusar quem o fez, o nome da editora original (um gigante do mercado da BD que tem o Spirou por exemplo) está impresso na capa. Mais, o álbum original é constituído por três aventuras dos Strumpfes (“O Strumpfe voador” e “O ladrão de Strumpfes”) que também são reproduzidas no álbum. A única coisa (fora o hilariante azul omnipresente) que “falha” é uma página (a página 54) que não foi impressa. Será isto uma forma de proteger contra alguma acção legal? Do tipo “não reproduzimos o álbum original totalmente porque falta a página 54”? Não sei / não respondo mas estamos todos à espera de mais um escândalo de “direitos de autor” para breve.

Estas tácticas situacionistas da 5éme Couche tem sido de uma graça extrema e para breve haverá desenvolvimentos quando o projecto DUST começar a funcionar. Estejam atentos!
Estranho também foi o aparecimento durante os dias do Festival do Walt Thisney, personagem (projecto?) “underground” transnacional. Há algumas fotografias dele com algumas figuras da BD “underground” como a malta da Chili Com Carne, Mattias Elftorp ou do Petir Comitë del Terror!

Mas o que me fez mais estranheza foi a Galerie Glénat! Angoulême como aliás todas as cidades europeias vive a crise económica, e é verdade que o centro da cidade tem dezenas de lojas abandonadas (para alugar ou vender), vítima do capitalismo e das grandes marcas que se instalaram num centro comercial subterrâneo no centro da cidade. A Glénat para quem não sabe é uma grande editora de BD e que detêm (mais) um império que até inclui duas lojas de BD e uma galeria em Paris. Na Rua de Hergé, instalaram-se com uma galeria temporária para cobrir os dias do Festival. Quando passei por lá foi mesmo uma surpresa porque este espaço não estava anunciado oficialmente. Tinha lá dentro alguns originais de Druillet e companhia em exposição e para venda, além de alguns livros e claro, uma mesa para os autógrafos. Alguns números acima dessa rua também se instalou temporariamente uma loja de segunda mão para livros de BD e discos em vinil – uma iniciativa local talvez ou um lojista de fora que teve a brilhante ideia?

É curioso, que estas duas lojas temporárias usem a mesma táctica “guerrilha” (ou na lógica Zona Autónoma Temporária, idealizada por Hakim Bey) tal como um “Fuck Off” (ou o Tenderete Em Valencia ou a Laica e a Morta em Lisboa. As semelhanças estão à vista: um grupo de malucos alugam um espaço por meia-dúzia de dias para fazer exposições, mesas de editores e concertos ou festas. Sinceramente fiquei chocado com esta capacidade do capitalismo conseguir mimetizar todas as ideias que a cultura alternativa consegue inventar – já devia ter idade para o saber mas aconteceu, peço desculpa, pelo desabafo. Só falta a FNAC começar a organizar “feiras de edição independente”, que soa a ironia mas acho que estamos cada vez mais próximos disso acontecer…

Para finalizar esta parte, o livro dos Strumpfes lembra-me duas coisas, que se o conceito do “cadáver-esquisito” demorou 30 anos a chegar à BD então só agora é que o “ready made” pelos vistos chegou à BD – demorou 100 anos! Ainda assim num país como a França não é por haver um mega-festival de cromos da BD que se pode falar que a BD tem presença pública ou institucional. Nos últimos 10 anos, revistas de Arte como a Beaux Arts Magazine ou este ano a Arts Magazine tem dedicado números especiais à BD. Esta última que Pedro Moura no blogue Ler BD [http://lerbd.blogspot.pt/2014/01/arts-magazine-hors-serie-art-bd.html] tão bem desmontou, propõe analisar os diálogos entre a banda desenhada e as práticas artísticas contemporâneas, mas como se espera, sendo uma revista necessariamente de artigos generalistas, espraia-se por toda uma espécie de vertentes diversificadas que podem criar a ilusão de esgotarem as dimensões a discutir, mas jamais entram em questão mais aprofundadas ou de verdadeiro ensaio, na plena acepção da palavra.

Claro que não deixa de ser isso mesmo, uma revista cheia de curiosidades sobre as ligações entre BD e Arte. Tendo ainda só lido “muito por alto”, não deixa de ser curioso que o nível de referências na revista há muito que deixou ser as “clássicas” da BD, que um público, como o por exemplo, o português ainda pensa quando falamos de BD – os patos semi-nus, os gajos com super-poderes e cuecas à mostra, reportes com cadelas, etc…

Um público que acede a textos sobre a dupla Ruppert & Mulot não é mesmo como o que lê a lista “non-sense” publicada no jornal I a 11 de Fevereiro. Mai’nada!



Xixi, cama!
Para acabar esta reportagem sobre o Festival de BD de Angoulême, uma referência aos portugueses presentes neste importante evento e à exposição patente no Museu da BD dedicada aos “sonhos na BD”.
Sobre a primeira situação não há muito a dizer... Encontrava-se lá a Associação Chili Com Carne no FOFF (evento “fuck off”) e o autor Paulo Monteiro a assinar livros no stand da Six Pieds Sous Terre, que lhe editou a versão francófona do livro O Amor Infinito que te tenho e outras histórias. Estava lá ele na tenda do “Mundo Novo” numa das poucas situações em que temos autores portugueses publicados fora de Portugal e a assinar livros neste festival. Pelo meio, encontrei alguns autores portugueses a explorar o mercado da BD como o David Campos (autor de Kassumai) ou a Sofia Neto, que acabou de completar um curso de BD em Angoulême e procura estrear-se como autora. No FOFF, a Chili Com Carne vendia os seus livros bem como de algumas outras editoras portuguesas como a MMMNNNRRRG, serigrafias e discos, tão habituada que está circular em festivais internacionais (Festival de BD de Helsínquia, Crack em Roma, Alt Com em Malmö, Tenderete em Valência), sendo esta a segunda vez no FOFF mas a quarta em Angoulême, tendo estado as outras primeiras duas vezes na zona da “BD Alternativa” (tenda que é prolongamento da “Novo Mundo”). A que se deve a mudança? Na essência, apesar de haver muito mais pessoas no “Novo Mundo” torna-se uma ilusão nas compras porque há menos pessoas focadas para edição independente, enquanto que no FOFF as pessoas que vão lá sabem para o que vão. Assim no “Novo Mundo” significa aturar desde putos a pedirem desenhos à pala enquanto que no FOFF o ambiente é mais de cerveja na mão e fiche-moi le camp!

“Fuck off” ou integrado no sistema, ainda assim vê-se que os portugueses são uma minoria que reflecte também a realidade do nosso mercado estagnado que não vingou nem depois do “boom” de 1996-2002 nem com os esforços institucionais também dessa altura – por exemplo, Portugal chegou a ter uma exposição, em 1998, no Museu do Papel, espaço onde geralmente são feitas mostras de países “convidados”. Este ano estava lá um colectivo de Toulouse, o Misma que apesar da piada Pop pouco me aqueceu, tirando o finlandês Roope Eronen, que finalmente tem Offices & Humans traduzido para uma língua acessível.
Quanto ao Museu da BD, para quem ainda quiser apanhar frio em França, está patente até 30 de Março a exposição “Nocturnes : le rêve dans la bande dessinée” que apesar da habitual cenografia “kitsch” que os franceses têm sempre a mania de fazer (e que costuma ser imitada cá em Portugal pela BD Amadora), valia bem a pena porque o Museu tem, ou consegue sempre reunir, um espólio incrível de originais, desta vez de 71 autores que exploram a questão do “Sonho”. Como se sabe este é dos temas mais emblemáticos da BD que aliás criou umas das suas primeiras obras-primas, falo daquele puto que caía sempre da cama na última vinheta da BD, o Little Nemo, criação de Winsor McCay.

Estranho o comissário Thierry Groensteen não ter incluído o sérvio Aleksandar Zograf, um autor que poderia ser tão ou mais óbvio como David B., Blanquet, Charles Burns, Julie Doucet, Max ou Rick Veitch nesta questão dos sonhos… Entretanto, esta foi (é) uma boa oportunidade de ver alguns clássicos como Yves Chaland, Guido Crepax, Moebius, Fred, Chantal Montellier, Hugo Pratt, Gilbert Shelton ou Joost Swarte; “clássicos a sério” como Frank King, George McManus, Alain Saint-Ogan, Elzie C. Segar ou Peter Newell - nesta categoria o que embasbacou este vosso “sr. blasé” foi o trabalho de M.T. « Penny » Ross que desconhecia de completo. E ainda, na falta de melhor expressão, “clássicos mesmo clássicos” como Alfred Crowquill, George Cruikshank Jr, Honoré Daumier e, claro, Rodolphe Töpffer, o “pai da BD” tal como a conhecemos.

Nota para uma curiosa solução que a organização encontrou para pranchas de BD que possam ser chocantes para crianças. É colocada uma pala preta por cima da prancha, a tapá-la, mas que pode ser removida por um adulto para poder vê-la. Um compromisso bem pensado...

Depois de estarmos cheios de BD pelos olhos, o Museu ainda tem ainda a sua grande colecção permanente que apanha a História da BD. Aqui há de tudo e para todos e é sempre um prazer ver as peças expostas mesmo que seja a terceira vez que o faça. Nesta colecção havia um destaque à BD HP do italiano Guido Buzzelli (1927-92), talvez seja um dos autores mais importantes que tirou a BD do espectro infanto-juvenil mas que teve menos reconhecimento que o seu contemporâneo Hugo Pratt. Em Portugal, por acaso até lhe publicaram o primeiro álbum, Zil Zelub (Presença; 1973) e em 2005 tivemos uma bela exposição sua no Palácio Galveias, no âmbito do Salão Lisboa. Tudo isto passível de esquecimento pelo público português, claro, mas pelos vistos em França, o Museu até comprou as pranchas originais recentemente, daí a razão da sua exposição pública. Vão lá ver que aqui não se aprende nada...



Marcos Farrajota
Lisboa, 21/02/14

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